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Foto do escritorFábio da Costa Azevedo

O Direito do Meio Ambiente e a quebra de velhos paradigmas

“Diz-me como olhas o ambiente e eu dir-te-ei que direito do ambiente
cultivas e defendes”[ J.J. Gomes Canotilho]


1. O período anterior a CF/88. Não resta dúvida que o capítulo dedicado ao meio ambiente é um dos mais avançados em matéria de proteção a bens jurídicos de nossa Constituição Federal de 1.988. Mas nem sempre foi assim. No Brasil, do descobrimento em 1500 até pelo menos a segunda metade do Século XX, mais especificamente a década de 60 do Século anterior, muito pouco havia em matéria de proteção legal ao meio ambiente. País de vasta extensão territorial, recursos naturais abundantes, e de talvez maior biodiversidade do planeta, o fato é que ultrapassado no Brasil um período inicial em que praticamente preocupação alguma existia com a preservação do meio ambiente, marcado pela omissão legislativa e apenas por algumas iniciativas pontuais e assistemáticas do poder público, numa segunda etapa assistiu-se em solo nacional a um ainda tímido e fragmentário processo legislativo em matéria ambiental. Deste segundo momento, dos idos de 1960 a 1970, destacam-se o Código Florestal de 1965, e os Códigos de Caça, Pesca e Mineração, todos de 1967. Contudo, encerrando este segundo estágio de evolução legal em matéria ambiental, em 1981, com a promulgação da Lei n.° 6.938/81, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, este passa a receber tratamento jurídico não mais de forma fragmentária, mas como um todo em si mesmo considerado, ou seja, um sistema ecológico integrado, entendido na forma da referida lei como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”[2]. 2. O regime jurídico-ambiental trazido pela atual Carta Política Elaborada sob a luz da Carta Magna de 1.969 (Emenda Constitucional n.° 1 à Constituição Federal de 1.967), mas muito adiante daquela em relação ao sistema jurídico-normativo de proteção ambiental, é certo que a referida Lei n.° 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente) foi recepcionada pela Constituição Federal de 1.988. Contudo, é possível se encontrar na doutrina respeitados Mestres, como os Professores José Afonso da Silva[3] e Érika Bechara[4], entendendo que, apesar de recepcionada a aludida lei, esta acabou contemplando em sua definição legal sobre o meio ambiente apenas os bens integrantes da natureza, ou seja, relacionados ao meio ambiente natural, silenciando tal definição quanto ao meio ambiente artificial, cultural e do trabalho. Neste contexto, esclareça-se que apesar do meio ambiente ser uno, a doutrina do direito ambiental costuma dividi-lo, para efeito de classificação, em quatro aspectos fundamentais, de acordo com o bem jurídico a ser imediatamente tutelado, vejamos: “A divisão do meio ambiente em aspectos que o compõem busca facilitar a identificação da atividade degradante e do bem imediatamente agredido. Não se pode perder de vista que o direito ambiental tem como objeto maior a tutela da vida saudável, de modo que a classificação apenas identifica o aspecto do meio ambiente em que valores maiores foram aviltados. E com isso encontramos pelos menos quatro significativos aspectos: meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho”[5]. Pois bem. Nossa atual Lei Fundamental, a “Constituição Cidadã” na feliz expressão de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembléia Nacional Constituinte que a produziu, na esteira das novas Constituições dos países que saiam de regimes ditatoriais, especialmente Portugal e Espanha, inspirada pela participação popular em sua elaboração, e pela busca à satisfação plena da cidadania, mas atenta à formação das novas sociedades de massa, e a degradação ambiental por estas provocada, elegeu o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um dos valores fundamentais para assegurar ao homem uma vida digna e, assim, dedicou um capítulo próprio à sua tutela, complementado por diversos outros dispositivos espalhados em seu texto e que dão àquele o seu devido contorno e sentido. Cuidou, e especialmente bem, a nossa Constituição Federal de todos os aspectos acima referidos e relacionados ao meio ambiente, e apenas para que o leitor possa acompanhar de forma mais clara o nosso raciocínio, podemos destacar, em especial, o artigo 225, incisos I e VII, relacionando-o imediatamente ao meio ambiente natural, os artigos 182 e 183 de forma a tutelar o meio ambiente artificial, os artigos 215 e 216 o cultural e, por fim, os artigos 6° e 200, o meio ambiente do trabalho. Entretanto, é no caput do artigo 225 de nossa Constituição Federal que vamos encontrar, ainda de que forma mediata, a tutela para todos estes aspectos do meio ambiente, razão pela qual o intérprete deve bem compreendê-lo e assimilá-lo: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 3. A construção dos novos paradigmas. A primeira parte a ser analisada do referido artigo 225 diz sobre a titularidade do direito material, indicando a expressão “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, que indiscutivelmente se trata de um direito de natureza difusa, ou seja, um direito transindividual (que pertence a mais de uma pessoa), de natureza indivisível, cujos titulares são pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias fáticas. A segunda parte do artigo está relacionada ao bem ambiental, ou seja, um “bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida”, surgindo a partir de então, pela primeira vez na órbita constitucional, uma nova categoria de bem, que em face de sua natureza jurídica, não se confunde com os bens públicos muito menos com os privados. O regime jurídico aplicável aos bens ambientais passa desta forma a representar um novo paradigma a ser observado em nosso ordenamento, sendo muito bem definido pelo Professor Carlos Frederico Marés: “Os bens ambientais são todos aqueles que adquirem essencialidade para a manutenção da vida de todas as espécies (biodiversidade) e de todas as culturas (sociodiversidade). ... todo bem socioambiental tem pelo menos dias expressões jurídicas e comportam, assim, dupla titularidade. A primeira é do próprio bem, materialmente tomado, a segunda é sua representatividade, evocação, necessidade ou utilidade ambiental e a relação com os demais, compondo o que a lei brasileira chamou de meio ambiente ecologicamente equilibrado. O direito sobre o bem socioambiental, então, é disposto como se estivesse em camadas, na primeira camada um direito de titularidade individual, que é o direito de propriedade (público ou privado), na segunda camada o direito coletivo a sua preservação para garantia socioambiental. Os dois não se excluem, ao contrário se completam e se subordinam na integralidade do bem, como se fossem seu corpo e sua alma”[6]. Um novo elemento interessante a ser considerado no artigo 225 corresponde à própria estrutura finalística do direito ambiental, pois conforme vimos acima, só será considerado como bem ambiental aquele que for “essencial à sadia qualidade de vida”, valendo destacar quanto a este aspecto a clara correlação entre este dispositivo e pelo menos outros dois novos e importantes artigos de nossa Constituição Federal, quais sejam, o seu artigo 1°, que estabelece como um dos Princípios Fundamentais da República o da “dignidade da pessoa humana” e seu artigo 6°, ao assegurar aos cidadãos brasileiros direitos sociais mínimos e indispensáveis a sua dignidade e bem estar, como por exemplo, o direito à educação, ao trabalho, lazer, segurança e etc. O último e, a nosso ver, mais relevante aspecto do artigo 225, é o que rompendo os conceitos mais tradicionais do Direito em sua época clássica, assegura a titularidade deste bem ambiental aos que ainda não nasceram, não são sequer nascituros, aqueles que, a rigor, não possuiriam ainda personalidade jurídica ou, como comumente lecionava-se em nossas faculdades, não teriam sequer existência no mundo do direito. Nossa Constituição Federal revoluciona esta ótica restritiva e por que não dizer atrasada de se compreender o direito, impondo não só ao Poder Público como também a toda coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para “as presentes e futuras gerações”. Desta forma, em homenagem ao principio da inafastabilidade de jurisdição (art. 5, XXXV, CF/88), segundo o qual nenhuma lesão ou ameaça de lesão pode ser excluída da apreciação do poder judiciário, sabe-se que este pode, por exemplo, vir a ser acionado por um cidadão, pela via da ação popular ambiental, para tutelar o direito que as futuras gerações têm assegurado de viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida e à própria dignidade humana. Ainda nesta seara não poderíamos deixar de mencionar mais um importante avanço feito por nossa Lei Fundamental na tutela do meio ambiente e da qualidade de vida humana, pois pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico o patrimônio genético passou a ser disciplinado, impondo-se ao poder público o dever de “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País”, e inclusive “fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético”. Esta verdadeira revolução provocada por nossa Constituição Federal, e que hoje nos faz discutir temas tão importantes como a biotecnologia, o patrimônio e a engenharia genética[7], a biodiversidade e até mesmo as formas para se conter o avanço da biopirataria em nosso país, refletem a preocupação que o nosso Constituinte teve com os assim denominados direitos de quarta geração. Com relação ao meio ambiente artificial, considerando-se que atualmente o mundo é essencialmente urbano, e que somente no Brasil estima-se que quatro entre cinco brasileiros vivam em cidades, pela primeira vez em nossa República uma Constituição Federal dedicou um capítulo próprio para cuidar da política urbana. E nossa Lei Fundamental mais uma vez foi muito feliz ao disciplinar o assunto, pois se já era possível encontrar em textos constitucionais anteriores ao atual certas referências aos limites do direito de propriedade, o de 1.988 não só proclama expressamente que a propriedade privada deve cumprir sua função social, como vai muito além, indicando que o objetivo fundamental da política urbana, a ser executada pelo poder público municipal, deve ser o de ordenar o pleno desenvolvimento das “funções sociais da cidade” e garantir o “bem-estar de seus habitantes”. Por fim, vale ressaltar que em matéria de proteção penal do meio ambiente, inovou de vez nossa Constituição Federal. Se logo após a sua promulgação, ao prever em seu artigo 225, parágrafo 3.°, a possibilidade de se responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas, deixando perplexos vários de nossos maiores penalistas, certamente o fez porque conseguiu se aperceber a tempo que a responsabilidade civil e administrativa não se mostrava mais bastante para coibir os novos, e cada vez piores, ataques aos nossos bens ambientais. 4. Conclusão. Em matéria ambiental a nossa Constituição Federal é reconhecidamente considerada um dos mais modernos e avançados sistemas jurídicos de proteção do meio ambiente. Após nossa atual Carta Política foi certamente mais fácil ao legislador ordinário elaborar inúmeras leis que vieram eficazmente regulamentar os seus artigos. O Direito Ambiental passou a ser orientado por novas diretrizes e objetivos. Velhos paradigmas ficaram pelo caminho. Afinal, não seria por meio das clássicas concepções do direito penal que conseguiríamos compreender o ente moral praticando crimes. Advém daí, a nosso ver, o mérito do texto constitucional. Ele propôs o novo, o necessário, a evolução da ciência jurídica a bem do interesse social, da tutela do meio ambiente como direito das atuais, mas também das futuras gerações. Apesar dos avanços em nosso sistema jurídico de proteção ambiental ainda há muito a ser feito. De boas e novas leis já não precisamos tanto. Implementar as existentes é medida que urge e papel dos órgãos públicos, da sociedade e dos cidadãos. [1] Canotilho, José Joaquim Gomes, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e da Universidade Autônoma de Lisboa, in “juridicização da ecologia ou ecologização do direito”. [2] Definição legal de meio ambiente, segundo artigo 3.°, I, da Lei n.° 6.938/81. [3] in “direito ambiental constitucional” , 2.ª edição, Malheiros. [4] in “a proteção da fauna sob a ótica constitucional”, Editora Juarez de Oliveira, 2003. [5] Fiorillo, Celso Antonio Pacheco, Editora Saraiva, 6.ª edição, 2005. [6] in “o dano socioambiental e sua reparação”. [7] Regulamentando os dispositivos constitucionais que tratam a matéria, nossa atual Lei de Biossegurança (Lei n.º 11.105/2005) define a engenharia genética como sendo a “atividade de produção e manipulação de moléculas de ADN/ARN recombinante”.

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